PONTE PEDONAL SOBRE A RIBEIRA DA CARPINTEIRA
COVILHÃ, COVILHÃ
João Luís Carrilho da Graça e AFAConsult, Lda. (António Adão da Fonseca e Carlos Quinaz, Engenheiros)
Pedro Abreu Pereira, João Rosado Baptista, Porfirio Pontes, Yutaka Shiki
Carrilho da Graça Arquitectos
2009
Da delicadeza
[Section XVI] On Delicacy - ”An air of robustness and strength is very prejudicial to beauty. An appearance of delicacy, and even of fragility, is almost essential to it.” Edmund Burke, Philosophical Enquiry into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, 1757
O núcleo da cidade da Covilhã, no interior de Portugal, ocupa um promontório no sopé do extremo Sul da Serra da Estrela, dominando visualmente uma vasta e fértil paisagem de relativa planura — a Cova da Beira — que da Estrela se estende às serras da Gardunha e da Malcata. A particular topografia do território em que a cidade se inscreve não só determinou a forma e as estratégias do seu desenho urbano como, até há um passado relativamente recente, proporcionou os meios técnicos e económicos para o seu desenvolvimento. Com efeito, os cursos de água dos vales da Carpinteira e da Goldra (ou Degoldra), que respectivamente delimitam o promontório da cidade a Norte e a Sul, forneceram a força motriz para a industrialização da tradicional actividade de transformação de lanifícios, reconhecida desde pelo menos o século XVI e alimentada pela pastorícia dos rebanhos ovinos (e marginalmente caprinos) criados na Serra, mas também pela dos que demandavam os seus pastos de Verão.
Este fenómeno transumante abarcava um território que se estendia das terras do Douro, a Norte, ao Alentejo, a Sul, e se alargava a Leste até Castela, fazendo equivaler ao domínio visual sobre a paisagem imediata um domínio territorial mais vasto, significativamente resultante do movimento através dessa mesma extensão territorial. Reflectido na cidade, este período de desenvolvimento originou a sua expansão não só em direcção aos vales, com a ocupação industrial do talvegue, mas mais tarde também na direcção do festo Norte da Carpinteira, oposto ao da cidade, onde nas décadas de 30 e 40 do século XX se construiu o bairro operário dos Penedos Altos para alojar a mão-de-obra da então denominada “cidade-fábrica”. A expansão da cidade para lá dos vales veio acentuar a percepção da sua topografia, e o posterior declínio da indústria alimentada pelos cursos de água, com o consequente abandono do seu lugar e das suas infra-estruturas, voltou a remeter, com um efeito paroxístico, os vales da Goldra e da Carpinteira à condição de acidentes orográficos à volta dos quais a cidade entretanto crescera. Acidentes que agora se vê obrigada a contornar nos seus movimentos internos, que os deixaram de incluir, e que percepciona apenas como negativo, como “espaços entre”.
O projecto e construção (2003 – 2009) de uma ponte pedonal e ciclável sobre o vale da Carpinteira da autoria de João Luís Carrilho da Graça, com AFAconsult, no quadro de um pleonástico plano para “aplanar” a experiência do movimento na cidade através de ligações em altura (mecânicas) e de nível (pedonais/cicláveis) entre o centro e as áreas periféricas, veio inscrever nesta paisagem uma linha que determina e possibilita um novo movimento de atravessamento do vale. Por sobre as encostas graníticas abruptas da ribeira, onde persistem as fachadas vazadas das fábricas de lanifícios e os muros de granito de suporte das râmolas de Sol (estruturas para a secagem das lãs), a ponte desenha-se, curva e contracurva, entre a cota determinada pela plataforma da piscina municipal dos Penedos Altos e, 220 metros depois, a mesma cota na encosta oposta, 52 metros acima do curso de água.
A não perpendicularidade entre a linha imaginária que liga os pontos de amarração e a linha de eixo do vale proporcionou a oportunidade para o traçado do tabuleiro instalar, mais do que uma ruptura, um deslize do paradigma Euclidiano: na presença de obstáculos, a distância mais curta entre dois pontos pode passar a ser, segundo Galileu (ou, pelo menos, segundo a personagem Galileu na peça homónima de Brecht), uma linha curva. Uma linha curva em três tramos, que no seu troço médio se organiza normal às encostas e perpendicular ao eixo do vale e que, inflectindo em cada extremo, orienta os troços terminais em direcção aos pontos de amarração pré-determinados, desenhando uma serpentina, reminescente da linha da beleza de William Hogarth (The Analysis of Beauty. Written with a view of fixing the fluctuating Ideas of Taste, 1753), uma possível referência. Referência não despicienda até porque, com efeito, a secção XVI, sobre a delicadeza como atributo da beleza, de A Philosophical Enquiry into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful (1757) de Edmund Burke, citada acima, parece metaforizar com precisão como arquitectónica e estruturalmente a ponte se materializa e suporta: duas vigas paralelas de e revestidas a aço com 1,75 metros de altura delimitam os 4,40 metros de largura do tabuleiro estabelecendo a sua secção, apoiando-se em quatro pilares, os dois centrais igualmente revestidos em aço e com as mesma dimensões exteriores do tabuleiro, cravados junto ao leito da ribeira, e os dois restantes, circulares, menores porque cravados já nas encostas, em betão parcialmente revestidos por blocos de granito, formal e materialmente desvinculados da estrutura metálica — paradoxalmente presentes e simultaneamente quase invisíveis na leitura do vão. Uma aparência de delicadeza, de fragilidade até, que resulta essencial à sua beleza e singularidade.
No seu atravessamento, a armadura metálica exterior, espécie de exoesqueleto protector, cede a um interior — pavimento e guarda corpos — em madeira de azobé, amável e táctil, proporcionando uma experiência háptica simultânea à experiência visual complexificada pelo singular desenvolvimento do tabuleiro que, sequencialmente, remete o olhar para o maciço da serra, a crescente proximidade da encosta e a paisagem da planície que se abre no fim do vale, paisagem esta exposta ao olhar numa perspectiva até aí impossível. À noite, entre a escuridão do maciço da Serra e as luzes próximas das encostas e longínquas da paisagem agora sem horizonte, o guarda corpos emana a luz que permite o percurso sobre o tabuleiro, concentrando o olhar no seu interior.
Branca nos paramentos exteriores e negra nos intradorsos, a ponte da Carpinteira desenha um pórtico, quase abstracto, e à distância quase materialmente indefinível — espécie de impossibilidade ou miragem —, sobre a ribeira e sobre a paisagem, instalando um novo quadro de relações físicas e visuais, proporcionando, assim, um re-mapeamento do território. Re-mapeamento porque é, de facto, na experiência do movimento, ou melhor, na forma como proporciona a percepção da experiência do movimento na paisagem, e a percepção da própria paisagem, que a ponte revela o reconhecimento da especificidade deste território. Porque nos incita não apenas a atravessá-la, por necessidade (ou por desejo), onde antes o não poderíamos fazer, mas nos incita também a percorrer fisicamente, depois de o fazermos com o olhar, a paisagem que nos revela. Porque consegue fazer coexistir, em si mesma e na paisagem, dois espaços-tempo: o espaço Euclidiano, métrico e hierarquizado, definido por um plano de mobilidade, medido em distâncias e tempos de percurso, eminentemente funcional; e um espaço centrado na experiência do corpo como receptor dos estímulos háptico e visual, percorrido intensamente, a uma velocidade que é relativa (simultaneamente muito rápida ou bastante lenta, conforme a experiência desejada ou necessária ao corpo em movimento), eminentemente sensorial.
[Section XVI] On Delicacy - ”An air of robustness and strength is very prejudicial to beauty. An appearance of delicacy, and even of fragility, is almost essential to it.” Edmund Burke, Philosophical Enquiry into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, 1757
O núcleo da cidade da Covilhã, no interior de Portugal, ocupa um promontório no sopé do extremo Sul da Serra da Estrela, dominando visualmente uma vasta e fértil paisagem de relativa planura — a Cova da Beira — que da Estrela se estende às serras da Gardunha e da Malcata. A particular topografia do território em que a cidade se inscreve não só determinou a forma e as estratégias do seu desenho urbano como, até há um passado relativamente recente, proporcionou os meios técnicos e económicos para o seu desenvolvimento. Com efeito, os cursos de água dos vales da Carpinteira e da Goldra (ou Degoldra), que respectivamente delimitam o promontório da cidade a Norte e a Sul, forneceram a força motriz para a industrialização da tradicional actividade de transformação de lanifícios, reconhecida desde pelo menos o século XVI e alimentada pela pastorícia dos rebanhos ovinos (e marginalmente caprinos) criados na Serra, mas também pela dos que demandavam os seus pastos de Verão.
Este fenómeno transumante abarcava um território que se estendia das terras do Douro, a Norte, ao Alentejo, a Sul, e se alargava a Leste até Castela, fazendo equivaler ao domínio visual sobre a paisagem imediata um domínio territorial mais vasto, significativamente resultante do movimento através dessa mesma extensão territorial. Reflectido na cidade, este período de desenvolvimento originou a sua expansão não só em direcção aos vales, com a ocupação industrial do talvegue, mas mais tarde também na direcção do festo Norte da Carpinteira, oposto ao da cidade, onde nas décadas de 30 e 40 do século XX se construiu o bairro operário dos Penedos Altos para alojar a mão-de-obra da então denominada “cidade-fábrica”. A expansão da cidade para lá dos vales veio acentuar a percepção da sua topografia, e o posterior declínio da indústria alimentada pelos cursos de água, com o consequente abandono do seu lugar e das suas infra-estruturas, voltou a remeter, com um efeito paroxístico, os vales da Goldra e da Carpinteira à condição de acidentes orográficos à volta dos quais a cidade entretanto crescera. Acidentes que agora se vê obrigada a contornar nos seus movimentos internos, que os deixaram de incluir, e que percepciona apenas como negativo, como “espaços entre”.
O projecto e construção (2003 – 2009) de uma ponte pedonal e ciclável sobre o vale da Carpinteira da autoria de João Luís Carrilho da Graça, com AFAconsult, no quadro de um pleonástico plano para “aplanar” a experiência do movimento na cidade através de ligações em altura (mecânicas) e de nível (pedonais/cicláveis) entre o centro e as áreas periféricas, veio inscrever nesta paisagem uma linha que determina e possibilita um novo movimento de atravessamento do vale. Por sobre as encostas graníticas abruptas da ribeira, onde persistem as fachadas vazadas das fábricas de lanifícios e os muros de granito de suporte das râmolas de Sol (estruturas para a secagem das lãs), a ponte desenha-se, curva e contracurva, entre a cota determinada pela plataforma da piscina municipal dos Penedos Altos e, 220 metros depois, a mesma cota na encosta oposta, 52 metros acima do curso de água.
A não perpendicularidade entre a linha imaginária que liga os pontos de amarração e a linha de eixo do vale proporcionou a oportunidade para o traçado do tabuleiro instalar, mais do que uma ruptura, um deslize do paradigma Euclidiano: na presença de obstáculos, a distância mais curta entre dois pontos pode passar a ser, segundo Galileu (ou, pelo menos, segundo a personagem Galileu na peça homónima de Brecht), uma linha curva. Uma linha curva em três tramos, que no seu troço médio se organiza normal às encostas e perpendicular ao eixo do vale e que, inflectindo em cada extremo, orienta os troços terminais em direcção aos pontos de amarração pré-determinados, desenhando uma serpentina, reminescente da linha da beleza de William Hogarth (The Analysis of Beauty. Written with a view of fixing the fluctuating Ideas of Taste, 1753), uma possível referência. Referência não despicienda até porque, com efeito, a secção XVI, sobre a delicadeza como atributo da beleza, de A Philosophical Enquiry into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful (1757) de Edmund Burke, citada acima, parece metaforizar com precisão como arquitectónica e estruturalmente a ponte se materializa e suporta: duas vigas paralelas de e revestidas a aço com 1,75 metros de altura delimitam os 4,40 metros de largura do tabuleiro estabelecendo a sua secção, apoiando-se em quatro pilares, os dois centrais igualmente revestidos em aço e com as mesma dimensões exteriores do tabuleiro, cravados junto ao leito da ribeira, e os dois restantes, circulares, menores porque cravados já nas encostas, em betão parcialmente revestidos por blocos de granito, formal e materialmente desvinculados da estrutura metálica — paradoxalmente presentes e simultaneamente quase invisíveis na leitura do vão. Uma aparência de delicadeza, de fragilidade até, que resulta essencial à sua beleza e singularidade.
No seu atravessamento, a armadura metálica exterior, espécie de exoesqueleto protector, cede a um interior — pavimento e guarda corpos — em madeira de azobé, amável e táctil, proporcionando uma experiência háptica simultânea à experiência visual complexificada pelo singular desenvolvimento do tabuleiro que, sequencialmente, remete o olhar para o maciço da serra, a crescente proximidade da encosta e a paisagem da planície que se abre no fim do vale, paisagem esta exposta ao olhar numa perspectiva até aí impossível. À noite, entre a escuridão do maciço da Serra e as luzes próximas das encostas e longínquas da paisagem agora sem horizonte, o guarda corpos emana a luz que permite o percurso sobre o tabuleiro, concentrando o olhar no seu interior.
Branca nos paramentos exteriores e negra nos intradorsos, a ponte da Carpinteira desenha um pórtico, quase abstracto, e à distância quase materialmente indefinível — espécie de impossibilidade ou miragem —, sobre a ribeira e sobre a paisagem, instalando um novo quadro de relações físicas e visuais, proporcionando, assim, um re-mapeamento do território. Re-mapeamento porque é, de facto, na experiência do movimento, ou melhor, na forma como proporciona a percepção da experiência do movimento na paisagem, e a percepção da própria paisagem, que a ponte revela o reconhecimento da especificidade deste território. Porque nos incita não apenas a atravessá-la, por necessidade (ou por desejo), onde antes o não poderíamos fazer, mas nos incita também a percorrer fisicamente, depois de o fazermos com o olhar, a paisagem que nos revela. Porque consegue fazer coexistir, em si mesma e na paisagem, dois espaços-tempo: o espaço Euclidiano, métrico e hierarquizado, definido por um plano de mobilidade, medido em distâncias e tempos de percurso, eminentemente funcional; e um espaço centrado na experiência do corpo como receptor dos estímulos háptico e visual, percorrido intensamente, a uma velocidade que é relativa (simultaneamente muito rápida ou bastante lenta, conforme a experiência desejada ou necessária ao corpo em movimento), eminentemente sensorial.
site: jlcg.pt
ver mais sobre o projecto:
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Ponte Pedonal . João Luís Carrilho da Graça from Vitor Gabriel on Vimeo.
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